Cidade
Seis mil quilômetros de saudade: família venezuelana busca reconstruir a vida em Bagé
por Melissa Louçan e Marcelo Rodríguez
Em uma casa cinza no bairro Menino Deus, uma família de sete pessoas está sentada em torno de uma mesa, na sala de jantar. Todos riem e brincam, de forma descontraída, deixando para trás as memórias de um passado ainda recente. A cena é real e protagonizada pela família Izquierdo, venezuelanos refugiados em Bagé, desde maio deste ano, que buscam um recomeço para suas vidas.
A reunião ao redor da mesa aconteceu na terça-feira à noite, durante uma das aulas de português que a família recebe através do programa Idioma Sem Fronteiras, da Unipampa. A aula é ministrada pela acadêmica de Letras Daniele Ferreira Jurgina, que frequenta a casa da família duas vezes por semana, auxiliando não apenas na aprendizagem da nova língua, mas também em um processo de acolhimento aos recém-chegados.
Em um intervalo da aula, a família recebeu a reportagem do Jornal MINUANO e relatou, em “portunhol”, a trajetória dos Izquierdo diante da crise econômica, social e política que a Venezuela atravessa e que resultou em uma grande diáspora para os países vizinhos.
A família é formada por três irmãos, Raul, 45 anos, Yoleidy, 37, e Reinaldo, 35, que vieram com esposas e filhos para a Rainha da Fronteira a convite de amigos bajeenses. Aqui, residem desde maio, em uma casa alugada pela igreja que frequentam, que garantiu estabilidade de um ano para que a família possa se reerguer no novo país. Outro irmão Izquierdo está instalado em Gravataí, cidade próxima a Porto Alegre.
Recomeço
Em seu país natal, Reinaldo atuava como designer gráfico, sua área de formação. Contudo, com o início do agravamento da crise econômica, passou a realizar outros serviços informais, como técnico em refrigeração. Raul é músico, mas também trabalhava como motorista profissional para aumentar a renda da família, complementada pelo salário da esposa, Íris, 52 anos, professora de pré-escola. Já Yoleidy atuava como secretária e também recorreu ao serviço informal para conseguir garantir a alimentação no final do mês, que a cada dia se tornava mais cara.
No Brasil, os irmãos também trabalham de forma autônoma, mas procuram vagas fixas de trabalho a fim de garantir a estabilidade da família, sem necessitar do auxílio prestado pela comunidade religiosa. “É uma situação muito difícil, muito dura. Sabemos tudo que tivemos que deixar na Venezuela, mas lá o dinheiro não custa nada. Tudo pelo que batalhamos não tinha mais valor nenhum”, lamenta Reinaldo.
A família é natural da pequena cidade de San Joaquín, com menos de 50 mil habitantes, no estado de Carabobo, a cerca de duas horas de Caracas, capital do país. Foi nesta cidade que ficaram mais sete irmãos e a matriarca, separados por 6.988,7 quilômetros.
A escolha por Bagé para iniciar um novo capítulo foi graças a amigos ligados à comunidade religiosa que frequentam. “Recebemos um chamado e tivemos menos de dois meses para nos prepararmos. Eu vendi um carro para poder sair do país, o Reinaldo vendeu eletrodomésticos e móveis”, relembra Raul.
Os dois irmãos e suas famílias atravessaram a fronteira e chegaram em solo brasileiro, em Pacaraíma (Roraima), em 3 de maio. No dia 11 chegaram a Bagé. Já Yoleidy chegou dois meses mais tarde. “Eu ia ir para a Colômbia, mas meus irmãos estavam vindo para o Brasil e eu resolvi vir também. Só sabia que tinha que sair de lá porque as coisas estavam piorando, mudando em questão de horas. Se de manhã eu comprava um pão com 100 bolívares, à tarde o pão subia para 200 bolívares e no outro dia já estava 400 bolívares”, conta.
Ao chegar em Bagé, o que mais surpreendeu Reinaldo foi uma ida ao supermercado. “Eu fiquei em choque. As prateleiras estavam cheias e com muitas variedades de alimentos. Lá as famílias se reuniam para conseguir fazer uma refeição, cada um levava o que tinha em casa. Uma comida que ficou muito popular com toda esta situação foi o pão com banana, que era barato. Isso no almoço e janta, todos os dias”, recorda.
Yoleidy comenta que coisas simples para quem vive em uma realidade confortável, como uma bandeja de ovos ou um quilo de carne, chegavam a custar um salário mínimo. “Então a gente tinha que escolher entre comer ou comprar remédios, roupas, itens de higiene. Passamos semanas sem água ou luz”, diz. “As mulheres lavavam os cabelos com detergente. E se as pessoas carregavam sacolas na rua, eram cercadas por crianças buscando o que comer”, acrescenta Raul.
Em cidades maiores, como Caracas, por exemplo, a situação era ainda mais preocupante. Reinaldo relata que até mesmo cães de rua serviram como refeição para a população faminta. “E também coisas ainda mais horríveis que nem vale a pena lembrar. Tinha gente comendo Perrarina (ração para cães) de tanta fome”, conta.
Reinaldo diz que resolveu sair não apenas em função da escassez de alimentos no país, mas, principalmente, pela falência da saúde pública. “As pessoas estão agonizando, morrendo até de uma dor de dente. Um amigo da família consultou com um médico que prescreveu um antibiótico que custava mais caro que o preço de uma casa. Os hospitais e farmácias não têm remédio, mas há comércio ilegal de medicamentos nas ruas com valor muito mais alto”, recorda.
De olho no futuro
Sobre o futuro que enxerga para a filha Ximena e a esposa, Mariangel, Reinaldo destaca: “Espero que a minha filha saiba aproveitar as oportunidades aqui no Brasil que eu não tive na Venezuela”. O pensamento é reforçado pelo irmão, que vê na cidade que os acolheu uma oportunidade de futuro para o filho Adrián, de 15 anos, que cursa o 1º ano do Ensino Médio na Escola Estadual Carlos Kluwe.
Apesar de toda a dor e dificuldades que passaram e testemunharam ao longo dos anos, a família busca ver a situação por um prisma mais positivo. “Graças a esta situação, nós podemos fazer muito com R$ 50, nós aprendemos a viver com o básico. Viver não é ter luxo. É ter o que comer e o que vestir e um teto sobre as nossas cabeças”, finaliza Yoleidy.
Foco no idioma
O contato com a família de venezuelanos foi facilitado pela mediação junto à professora Clara Dornelles, que coordena o projeto Português para Estrangeiros, dentro do programa Idioma Sem Fronteiras, da Unipampa. Através do projeto, foi criado o Núcleo de Acolhimento aos Estrangeiros, a fim de auxiliar pessoas de outros países que chegam ao Brasil, principalmente possibilitando a apropriação da Língua Portuguesa.
Além da família Izquierdo, outros venezuelanos chegaram há pouco tempo na cidade e já estão participando das aulas, diretamente na universidade. “Não se trata apenas de ensinar a língua, mas também é um processo de acolhimento que impacta na adaptação. A própria questão de aprender Português facilita um relacionamento interpessoal e frente à demanda que eles mesmos têm”, destaca Clara.