Urcamp
20 de setembro e a traição ocultada pelo orgulho
por Patrik Vaz da Rosa, acadêmico do curso de História da Urcamp
A memória de um povo é ditada pelos grupos que se apropriam dela, e foi assim que o tradicionalismo gaúcho adotou os “heróis” da Guerra dos Farrapos como os grandes símbolos da herança cultural do Rio Grande do Sul, resumindo aos supostos feitos desses homens toda a bravura e resistência farroupilha frente ao império.
Os líderes farroupilhas como Bento Gonçalves, Antônio Souza Neto e Davi Canabarro eram estancieiros escravocratas produtores de charque, membros da elite sulista que travaram uma guerra contra o império lutando pelos seus próprios interesses políticos e comerciais. Pelo contingente limitado do exército rebelde, muitos escravos foram incorporados às fileiras, sob a promessa de liberdade após o término da guerra.
Os soldados negros então integraram o Corpo de Lanceiros Negros, tropas que andavam a pé ou a cavalo com uma lança na mão, e foram essenciais em várias vitórias dos rebeldes nos campos de batalha. É importante frisar que em nenhum momento os revolucionários farroupilhas buscavam a abolição da escravidão. A promessa de liberdade com a vitória só foi feita aos negros que lutaram na guerra, mantendo a grande massa escravizada que trabalhava nas estâncias. Segundo o historiador e jornalista Juremir Machado, Bento Gonçalves ao falecer deixou um inventário com 53 escravos para os seus herdeiros. A noção de liberdade dentro dos ideais republicanos significava se livrar das amarras burocráticas e abusos do império, e não libertar a mão de obra escrava.
O historiador porto-alegrense Moacyr Flores, em seu livro Negros na Revolução Farroupilha, faz um excelente levantamento de dados dos documentos do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, e através de diários, correspondências e documentações traz a tona muitas provas ignoradas sobre a Guerra dos Farrapos, entre elas a traição aos Lanceiros Negros, no episódio conhecido como o Massacre de Porongos, e a farsa do Tratado de Ponche Verde, como é descrito pelo autor. Por muitos anos esses momentos da guerra foram esquecidos e, assim, o positivismo gaúcho passou a exaltar somente o suposto heroísmo dos republicanos, que teriam se rebelado contra as forças imperiais.
A verdade pouco divulgada é dolorosa. Com o enfraquecimento das tropas republicanas, o fim da guerra foi se aproximando, e um tratado de paz parecia a melhor solução. Bento Gonçalves até tentou colocar dentre as exigências do tratado a libertação dos Lanceiros Negros, o que não foi aceito pelo império. Coube então a Davi Canabarro combinar a traição junto ao Barão de Caxias: Na noite do dia 14 de novembro de 1844, Davi Canabarro, propositalmente, desarmou os lanceiros no acampamento e, durante a madrugada, os imperiais atacaram a tropa, que não ofereceram qualquer resistência. Há relatos de que Canabarro teria sido avisado da aproximação do inimigo, e mesmo assim não tomou providência. Ao todo, cerca de 100 homens foram mortos e 333 aprisionados naquela noite. Os lanceiros sobreviventes foram entregues ao império de acordo com o Tratado de Ponche Verde. Para os líderes, a guerra acabou bem. Todos receberam anistia e alguns até mesmo alcançaram cargos políticos no governo de Dom Pedro II.
Por que a sociedade gaúcha não se posiciona em relação ao Massacre de Porongos? A Guerra dos Farrapos se tornou o mito fundador da identidade regional. Transformar os líderes dessa guerra em heróis legitima a importância dessa revolta para a cultura rio-grandense. Ao tirar a humanidade dos líderes farroupilhas e alçarem eles a condição de heróis, esses homens se tornam figuras inquestionáveis. Quando levantamos a discussão sobre Porongos, a condição do mito se torna duvidosa e a função do tradicionalismo é manter as coisas como estão, mesmo que pra isso parte da história seja apagada.
Trazer o debate sobre o Massacre de Porongos é evidenciar a importância desses soldados que lutaram e foram traídos em uma guerra que não era deles. É discutir o racismo que está enraizado na cultura gaúcha. Cabe aos historiadores e a todos que lutam por um Rio Grande melhor, lembrar do dia 14 de novembro tanto quanto o 20 de setembro, para que os ideais de liberdade, igualdade e humanidade tenham um verdadeiro sentido em nossa cultura.