Segurança
Após seis anos, acusada por preconceito racial contra senegalês em Bagé é condenada
por Rochele Barbosa
“Uma luta muito difícil, um trabalho de enfrentamento e de combate ao racismo. Demorou, mas temos hoje um resultado positivo, uma condenação inédita”, começou assim a entrevista a advogada Patrícia Alves, que fez parte da assistência de acusação no caso de Ousmane Tall, de 49 anos, um senegalês, naturalizado brasileiro, que sofreu, no dia 28 de agosto de 2017, uma agressão seguida de xingamentos de uma professora aposentada, de 63 anos, em via pública, na avenida Sete de Setembro, próximo à Caixa Ecônomica Federal, onde ele trabalhava como ambulante.
A acusada foi condenada a dois anos de reclusão e 20 dias de multa, por preconceito racial. Por ser em via pública, a sentença foi agravada, que converteu em pena restritiva de direito, prestação de serviço à comunidade pelo mesmo período de pena, prestação pecuniária de um salário mínimo a uma entidade assistencial e indenização de R$ 5 mil, para a vítima. “Ela pode recorrer ainda, mas o nome dela fica no rol dos culpados”, explicou a advogada.
Imigrante
Ousmane Tall chegou no Brasil há 17 anos. Desde então, morou em Natal/RN, Brasília/DF, São Paulo/SP e em Santa Maria, Passo Fundo, Caxias do Sul, Erechim, Rio Grande até se instalar, há uma década, em Bagé. “Vim trabalhar no Brasil. Eu tive meu primeiro contato com esse país, na Copa do Mundo, quando vi o 'Bebeto' fazer um gol, em 1994, e tive vontade de vir para cá”, contou.
Tall conta que foi sempre bem acolhido e que esse caso foi apenas um “acidente”, que todos tratam ele com carinho e solidariedade. “Eu nasci em uma cidade pequena e meus familiares, meus pais e irmãos nos mudamos para Dakar (capital do Senegal). Lá eu casei, tenho cinco filhos e minha esposa. Eles moram lá e vou visitá-los a cada dois ou três anos”, explicou.
O senegalês se disse emocionado, falando de seu país, que sente saudade da família, mas que a vida lá é muito difícil. “No Brasil, fico doente, sou bem atendido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), não preciso pagar nada. Aqui o dinheiro que ganho é bom, lá no país não existe SUS, tudo tem que pagar e nada é para os pobres. Aqui temos uma vida melhor”, declara.
O imigrante conta que mora com um amigo de senegal, em uma casa que foi doada pela Associação de Apoio a Refugiados e Imigrantes. “Eu sou muito grato. Nasser Yusuf é meu amigo, mais que amigo, é família que tenho em Bagé. Somos três senegaleses que moramos aqui, fiz muitas amizades, aprendi a falar português. Nossa língua lá é outra, tem um dialeto e o francês é oficial, que se aprende na escola, mas todos me entendem aqui, por isso que digo, acho que o que aconteceu foi uma coisa a parte, o resto da população é carinhosa comigo”, salienta.
Questionado sobre o episódio, Tall lembra que, quando aconteceu o fato, ele não queria fazer nada contra a mulher que o havia agredido e lhe xingado. “Eu fiquei muito triste depois que isso aconteceu. Fui para o Senegal e, geralmente, fico 30 dias. Desta vez fiquei três meses, não pensava em voltar, fiquei chateado, não imaginava que isso iria acontecer comigo. Penso que ela fez isso porque eu sou africano, pensei que era porque sou preto. Somente voltei porque a comunidade e a Associação me deram coragem, todos são acolhedores”, avaliou.
Processo
O caso foi levado à Polícia no mesmo dia. Um registro de ocorrência na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) deu início aos trâmites, em dezembro de 2017. A Primeira Delegacia de Polícia Civil entregou o inquérito e indiciou a acusada por injúria racial.
Apenas em junho de 2019, o Judiciário acatou a denúncia do Ministério Público e abriu o processo. Mas apenas em novembro de 2021 ocorreu a primeira audiência, quando foram ouvidas a vítima, duas testemunhas da defesa e três testemunhas da acusada e, no dia 25 de março de 2024 que saiu a sentença, demorando mais de seis anos o desenrolar do processo.
Patrícia explica que hoje a lei mudou, que agora todos os casos são racismo. “Na época que aconteceu, a lei ainda não havia modificado. Mas mesmo assim, seguimos lutando e fomos em frente”, destacou.
O advogado Luís Alves também fez parte do processo de acusação. Os dois defensores atuaram com a Promotoria para dar sequência no caso. “Somos dois advogados negros, isso é importante para nós. Essa vitória é de uma luta de todos, temos que ter nossos direitos garantidos e lutamos para que todos os negros tenham os seus espaços”, enfatizou Alves.
Patrícia ainda diz que foi necessário trocar o rito processual para haver andamento. “Tivemos muitos impasses. Sabemos que o sistema jurídico é moroso, mas seguimos insistindo e hoje obtivemos esse ótimo resultado”, comentou. Já Alves finaliza dizendo que trata-se de um caso inédito, pelo menos para Bagé. “Isso é muito importante para nós, pois é um fato importante na luta contra os preconceitos”, finalizou.
Relembre o fato
No dia 28 de agosto de 2017, o caso de racismo e xenofobia (preconceito contra imigrantes) foi registrado na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA). O fato ocorreu em frente a uma loja, na avenida Sete de Setembro. Um senegalês, que residia no Brasil, há 17 anos, estava trabalhando, vendendo produtos no centro, quando foi vítima de racismo. Ele contou, no boletim de ocorrência, que uma mulher se aproximou e, sem motivo algum, lhe desferiu um tapa nas costas. Após, arrancou o seu boné e jogou no chão.
A vítima, que é naturalizada como brasileiro, informou que a acusada começou a lhe xingar, o chamando de ‘escuro’ e de ‘lixo’, dizendo para que ele ‘voltasse para o seu país, para morrer de fome’. Amigos e testemunhas acompanharam o fato e identificaram a acusada. A professora foi flagrada, em vídeo, no dia 28 de agosto de 2017, no centro de Bagé.
O fato, ocorrido em 2017, gerou repercussão e resposta do Grupo de Apoio a Refugiados e Imigrantes e Black Sul, bem como da população local.